terça-feira, setembro 19, 2006

Livros da Lua Nova - As escolhas do Pedro



A pequena sereia e o grande nariz

Duas variações no mesmo tema, este conto infantil e esta peça de teatro são dois belíssimos exemplos do muito que o romantismo nos pode oferecer.

De um lado a sereia, ser de mil encantos, vivendo num mundo mágico e feliz, que se enamora perdidamente por um príncipe – por quem, senão por um príncipe?

Do outro, um Cyrano de proeminente apêndice nasal, feio por fora, belo por dentro, um homem por trás de um nariz, que de nariz no ar arranha os céus, no seu amor por sua prima Roxane.

Em ambos os casos tanto o príncipe como Roxane, enamorados de um amor falso: falso o amor do príncipe, porque se dirige a uma miragem – a da sereia que o salvou do afogamento mas que ele não reconhece na pequena sereia, falso o amor de Roxane, porque começa por uma miragem, uma imagem uma aparência, e se desenvolve para uma pessoa dentro de outra, para uma pessoa por trás de outra , para Cyrano, de nariz escondido atrás de Christian.

Em ambos os casos o sacrifício e a generosidade dos amantes: a sereia entrega a sua belíssima voz em pagamento por uma poção que lhe dará pernas; Cyrano entrega a sua voz, os versos da sua voz, ao seu próprio rival. A sereia que troca a sua cauda de peixe por uns pés que a torturam “como se andasse sobre facas” – esta imagem sempre teve para mim uma fortíssima impressão. Cyrano, que defende o amor de Roxane, tanto espiritualmente, evitando as trapalhadas de Christian como fisicamente, defendendo-o em campo de batalha. A sereia que renuncia à vida, ao não matar o príncipe, depois deste se casar com outra princesa, e, mergulhando, dissolve-se em espuma do mar. Cyrano que renuncia a Roxane, ao calar a verdade sobre Christian perante a sua morte.

Ao mesmo tempo, há algumas diferenças curiosas entre os dois, que me parecem marcar uma forte diferença de género: a sereia tenta alcançar o seu príncipe enquanto Cyrano é a este nível uma personagem bem mais complexa: se por um lado podemos dizer que Cyrano vive através de Christian a sua paixão, é também patente que os seus interessantes são divergentes, rivalizam, com os daquele. Talvez Cyrano ponha a vontade e o sentimento de Roxane à frente dos seus próprios embora também seja verdade que ele vê em Christian uma oportunidade, a oportunidade de ultrapassar o seu próprio nariz. Dir-se-ia que a sereia procura sempre aproximar-se daquele que ama enquanto Cyrano se mantém à distância, sem estar distante. Não é por acaso que ali está uma sereia e não um tritão e que aqui está um cavalheiro e não uma dama.

Os paradigmas de sacrifício por amor parecem ter na cultura europeia alguma referência cristã: “Não há maior amor que dar a vida por aqueles que se ama” é uma frase de Cristo. Porém, esta base comum não é completamente transposta. Porque enquanto ali o “dar a vida” tem por objecto a transcendência do próprio eu, tem um imanência universal, aqui, nos românticos, a vida é dada em função daquela referência privada, daquela relação, daquele sentimento: esgota-se nele. Neste sentido, há também alguma diferença entre a sereia e Cyrano: ela morre para salvar o príncipe, enquanto o sacrifício de Cyrano – o silêncio em vida – é uma renúncia que transcende o drama que a origina.

Pedro Gama Vieira
  • O Pedro é um amigo destas caminhadas de folhas feitas.
    Com ele já descobrimos livros, autores, histórias, poemas e contos, alguns dos quais escritos por ele, que nos ajudam a sonhar e a ver para além do que as palavras, à primeira vista, nos mostram.

    O nosso bem aja pelos livros que aqui nos deixas no Baú dos Contos da Lua Nova!


FICHA TÉCNICA:
Cyrano de Bergerac - Edmond Rostand
http://en.wikipedia.org/wiki/Edmond_Rostand
O DVD da peça recriada em filme, de Jean-Paul Rappeneau, com Gérard Depardieu:
http://clubemydvd.com/film.php?id=000921
O livro (apenas no Brasil que por cá, infelizmente, não há):
http://www.planetanews.com/autor/EDMOND%20ROSTAND

A pequena sereia - Hans Christian Adersen
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hans_Christian_Andersen
http://purl.pt/768/1/index.html
O livro de contos originais:
http://www.circuloleitores.pt/cl/artigo.asp?cod_artigo=113057

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